(Retomo o fio à meada da minha próxima intervenção
no Conselho Consultivo Estratégico da AMP para a educação e formação,
acrescentando o take 2 da minha reflexão. Uma ideia central atravessa esta reflexão. As políticas de
educação encontram-se numa encruzilhada e exigirão respostas rápidas e consequentes
na sua dimensão nacional. Isso, porém, não dispensa, antes pelo contrário, a
inovação na territorialização dessas políticas, que não é mais do que uma forma
de descentralização.)
3. A complexidade de uma transição: a
maturação do sistema de educação e formação
O documento Estado da Educação 2023, reportado ao ano de
2022 e recentemente publicado pelo Conselho Nacional de Educação, constitui um
referencial útil para compreendermos a complexidade da transição a que me
refiro e que se prende genericamente com a emergência de um ainda não
consolidado sistema de educação e formação.
A simples invocação das seis comissões especializadas que
têm funcionado no âmbito do CNE ajudam-nos a focar a referida transição: 1.
Currículo; 2. Inovação Pedagógica nas Escolas; 3. Escola e Sociedade; 4.
Professores e Outros Profissionais da Educação; 5. Democratização e
Desigualdades Educativas; 6. Educação Superior, Ciência e Tecnologia.
Na minha interpretação, a transição para um sistema de
educação e formação que alargue o alcance do que até aqui designávamos de
“sistema educativo” é marcada por um conjunto de traços estruturais dos quais
destacava os seguintes:
-
A continuada subida das
taxas de escolarização para todos os graus da escolaridade obrigatória e também
da formação superior, ao mesmo tempo que, finalmente, e por força
essencialmente do esforço de qualificação de jovens, a população ativa e o
emprego começam a revelar uma subida continuada nos nossos níveis de
qualificação, que devem ser vistas em simultâneo com a descida continuada, que
não sabemos ainda se é sustentada, das taxas de insucesso e abandono escolar;
ou seja, o sistema está a qualificar mais pessoas e com níveis mais elevados de
qualificação, incluindo as dimensões mais profissionalizantes;
- A progressiva
importância e peso do ensino profissional com modalidades de dupla
certificação, ainda longe da paridade com a importância dos cursos
científico-humanísticos no secundário (60,3% de alunos nos CCH) e com alguns
problemas de estagnação (37,8% nas ofertas de dupla certificação em 2021-22) e
sobretudo com uma procura social por parte dos jovens e das famílias que,
apesar dos progressos já alcançados, ainda não equipara com a da procura dos
científico-humanísticos;
-
A nova realidade dos
CTeSP que vai no sentido de reforçar a abrangência do tal sistema de educação e
formação, exigindo uma regulação mais intensa;
-
A influência no sistema
ditada pelo declínio demográfico estrutural que atravessa a sociedade
portuguesa, com as suas componentes irreversivelmente associadas do incremento
da imigração, do efeito sobre o número de jovens e das consequências sobre o
envelhecimento de professores;
-
O impacto que as
transições digital (com os desafios ciclópicos da inteligência artificial) e
energético-climática tenderão a provocar no Perfil dos Alunos à Saída da
Escolaridade Obrigatória (PASEO), por sua vez impactante dos curricula a
oferecer nos diferentes graus da escolaridade obrigatória;
-
As exigências
desproporcionadas que recaem sobre a Escola em matéria de respostas a um
deslaçamento da vida social e familiar, que acontece num período extremamente
ingrato de desvalorização social do papel dos professores e de problemas de
desenvolvimento e consolidação de carreiras que se têm arrastado para lá do
razoável;
-
Os desafios crescentes
que neste contexto e de importância necessária acrescida de respostas ao ensino
profissional que são suscitados em matéria de formação de professores e dos
serviços das Escolas de orientação vocacional;
-
A procura de um
equilíbrio entre a formação para a qualificação inicial de jovens e a formação
de adultos, sempre pautada pelo objetivo social de reduzir o número dos “left
behind”, seja de jovens, seja de adultos empregados ou desempregados;
-
A pressão crescente para
a empregabilidade das formações (em 2022, 81,7% da população entre os 20 e os
34 anos que concluiu um nível de educação igual ou superior ao secundário
encontrou emprego 1 a 3 anos depois da sua conclusão), no quadro de uma melhoria
generalizada das qualificações oferecidas e da desejável mudança estrutural da
economia portuguesa capaz de as absorver.
O Relatório do CNE 2023 encontra numa síntese feliz a
adequada expressão de complexidade desta transição:
“Na ordem dos princípios e dos factos, a
democratização da educação e a construção de uma sociedade justa, exigem um
sistema de ensino equitativo, na dupla aceção de inclusão e de justiça social;
uma educação universal, lifelonging, obrigatória e progressivamente gratuita.
Os imperativos éticos e os objetivos económicos impõem uma Educação para todos
e para cada um, capaz de consubstanciar difíceis articulações: ser acessível,
sem descurar a qualidade; constituir‑se universal, sem obliterar a diferença; atenta às especificidades do
local, sem esquecer o global; perene nos valores universais, ainda que flexível
à vertigem da mudança”.
4. Territorializar para melhor responder às
exigências da transição complexa
A secção anterior mostra, creio que de forma muito
assertiva, como a consolidação do sistema de educação e formação tem uma
dimensão nacional clara e incontornável, desafiando o futuro das políticas
públicas de educação e formação, não esquecendo que parte delas continua a ser
largamente financiada no âmbito dos Fundos Estruturais (não esquecendo o
esforço de investimento do PRR).
No meu modelo interpretativo, porém, a resposta a
garantir ao nível nacional das políticas de educação e formação poderá ser
substancialmente melhorada consolidando e alargando o processo de
territorialização que, de forma pioneira e desigual em termos de consistência,
é certo, tem vindo a ser desenvolvido no âmbito da regulação da oferta de
cursos profissionais. Este processo, no qual a Área Metropolitana do Porto tem
assumido uma posição de protagonismo e de dianteira, está longe de representar
já uma institucionalização assegurada. Nem todas as Comunidades Intermunicipais
têm agarrado o processo com o mesmo empenho e capacidade, o relacionamento
entre as CIM e os municípios está longe ainda de estar perfeitamente organizado
e do mesmo modo a articulação do sub-regional (NUTS 3 /CIM) e do regional
(papel das CCDR) apresenta ainda significativas margens de progresso.
Sem ignorar por exemplo o papel relevante que a lógica
setorial (nacional) poderá desempenhar na melhoria das condições de ajustamento
(matching) entre as qualificações que se oferecem e as competências que são
procuradas no mercado de trabalho, sou dos que defende que a territorialização
regional e sub-regional é essencial para a concretização de um sistema de
educação e formação menos ou exclusivamente ditado pelas forças da oferta de
educação e formação e com uma mais intensa plasticidade sistémica na maneira
como empresas e empregadores intervêm nesse mesmo sistema.
Talvez nas componentes superiores do sistema (formação
superior e avançada) e muito a reboque da crescente importância assumida pelos
temas da inovação, talvez se tenha compreendido mais cedo a dimensão
estratégica dessa mudança. E não podemos ignorar que o estado da arte inicial
não era de todo favorável ou facilitador dessa mudança, já que era conhecida de
todos e dos principais relatórios internacionais a escassa comunicação que
existia entre o sistema universitário e de investigação e as empresas.
Associo por isso as questões da territorialização das
políticas de educação e formação a uma dimensão organizacional do sistema que
interpela todos. O facto de se ter começado pelas chamadas qualificações
intermédias e pela regulação dos cursos profissionais não é em meu entender por
acaso. A dimensão do ensino profissional exige uma profunda mudança da procura
social das famílias e dos jovens, dada a dimensão do estigma existente, aliás
algo paradoxal num país em que, há bem pouco tempo, em quase todas as conferências
e seminários se clamava contra o esquecimento a que o ensino
técnico-profissional fora votado.
Embora o processo exija uma capacitação reforçada das CIM
e a consolidação dos espaços de concertação territorial que foram ou serão
criados em torno da sua atividade, existem condições para se aprofundar a
fileira das qualificações intermédias, envolvendo nesses processos por exemplo
os CTeSP e o próprio ensino artístico
especializado.
A inventiva e a criatividade dos processos de
territorialização encontrarão em cada CIM e nas CCDR as fórmulas mais ajustadas
à eficácia da concertação. O período que vivemos, com o enorme desafio das
transições digital e climática, é motivador de reflexões prospetivas e de
antevisão de necessidades em cuja definição se consiga uma participação
alargada.
Haverá no entanto que resistir à tentação da
homogeneização precoce destes processos. As CIM que iniciaram o processo não
podem ser penalizadas pelo atraso dos outros. A territorialização não deixa de
ser uma forma de descentralização.
E esta como bem sabemos quando iniciada pode
transformar-se num processo a diferentes velocidades e por isso conduzir a
desiguais formas de maturação organizativa.
Mas qual é afinal o problema?